O Leviatã é, sobretudo, uma leitura ontológica, do ser humano e da sua criação de Homem “artificial”, o Estado. Porém, há de convir de que é uma ontologia decantada da religião, por mais, que na visão de Hobbes, o Estado eclesiástico seja subordinado ao Civil; o “Poder Civil” o é de fato por ser a complementaridade da autoridade de “Deus” na Terra, amplamente respaldada pela Bíblia, de que se tinha que respeitar os superiores terrenos, até que o “Reino dos Céus” seja nos apresentado novamente (desde a libertação dos judeus do cativeiro do Egito) quando do retorno de Cristo no dia do juízo.
Percebe-se
na leitura minuciosa e dedicada a magna obra de Hobbes, que Lukács o leu com
bastante cuidado na formulação de sua Ontologia
do Ser Social. Especificamente na teoria da dupla verdade desencadeada pela
Igreja (a concepção e convivência entre as descobertas da ciência e a visão
criacionista, a criação do mundo por Deus, por exemplo, a teoria da evolução de
Darwin e a concepção de “Adão e Eva”) com a chegada do Iluminismo, e na crítica
das idéias do Cardeal Berlamino, que buscava a despeito desta concessão da
dupla verdade, o monopólio monárquico do Papado sobre o mundo terreno, seja
ideologicamente ou materialmente. Hobbes naquela época, já que tinha uma visão
dialética, embora com as distorções do pensamento religioso que buscava “pular
por cima” da ontologia humana e natural, já tinha também uma concepção da
teoria do espelhamento: a separação do que é objeto e do que é a aparência[i].
Iniciando
em seu método de abstração pela célula básica, o homem, ele discerne o problema
da imaginação, que desconectado de forma consciente ou inconsciente das
sensações, acaba por produzir deformações da realidade com o fomento de crenças
religiosas, espirituais que acabam por produzir um dissenso e contaminar a
ontologia da vida real. Para ele, esta sensação produz o pensamento que se
reproduz em série de pensamentos. Distingue a prudência advinda da experiência
humana, da sapiência advinda da ciência. Defende que a imaginação sem
finalidade é loucura[ii].
De
forma inteligente e acurada, percebe que é o ócio e o desejo de prazeres
sensuais que faz o homem propenso a obedecer a um poder comum, assim, como o
temor dos ferimentos e da morte “violenta”. Da forma contrária, há homens, a
que ele chama de indigentes e necessitados ávidos por honras militares, que não
se importam em permanecer em status de ócio, muito menos de serem feridos ou
mortos, pois, para eles, só se termina um jogo começando de forma belicosa
outro. Nada tão atual como esta constatação. E muito utilizado pelos Estados e
pelas situações de rebelião. Assim, como a busca de prazer, o desejo de saber e
de artes coloca o ser humano na condição de buscar também a proteção do Poder
comum. É nesta relação que ele classifica e condiciona a obrigação à servidão.
Já que para ter o prazer e não ser ferido ou morto, há em troca à proteção de
um Poder, e, por conseguinte, a obrigação empenhada de “servir”, do primeiro
para o segundo.
Demonstra
que a eloqüência simula a sabedoria. E que por trás do homem e de sua estrutura
e da natureza, está Deus como causa primeira[iii],
e que não se deve buscar o seu conteúdo e forma, de forma ávida, já que a
curiosidade científica ou da experiência não cabe neste intento. Por isso,
devido à necessidade de servidão e de obrigação para que o homem seja suscitado
a sair de seu estado de natureza (uma abstração metodológica), donde a morte é
latente na luta de todos contra todos[iv]
em busca da conservação da vida; e do homem como um ser que fomenta a sua
crença, seus temores e série de pensamentos na confecção de um Poder comum,
seja monárquico ou uma Assembleia de homens, com a totalidade de autoridade e
soberania para que haja a manutenção da estabilidade social com um governo que
protege seus cidadãos com base neste pacto entre o soberano e seus súditos.
Para que estes sejam protegidos, e possam deleitar-se em seus prazeres, dos
sentidos, e da imaginação, do saber e da garantia da vida e não da morte e dos
ferimentos do corpo, é que tais devem como obrigação servir-lhe, independente
das leis que o soberano lhes imponha.
Por
que o pacto não pode ser desfeito, depois de feito. E por que, segundo Hobbes,
a condição de autoridade suprema, mesmo em detrimento dos súditos, ainda é
melhor e superior à ordem natural, onde todos guerreavam contra todos.
Neste
sentido, ele discrimina a política humana, da política divina: o primeiro
subsidiado e capitaneado pelos fundadores civis. O segundo, por Moisés e Jesus.
Mas, ambas tendo como baluarte o contrato, a transferência de direitos em troca
da obrigação por parte dos homens em serem sujeitados pelo poder comum. Apesar
de citar que a proteção remete ao não ferimento e a morte violenta do corpo,
Hobbes, consente a tortura “para ser empregada como meio de conjectura e esclarecimento
em um exame posterior ou na busca da verdade..”[v].
O
filósofo inglês disserta sobre o que chama: de Leis da Natureza, leis de Deus,
que permeiam a razão humana, que estabelece a necessidade de se cumprir pactos;
de se nortear por leis do senso comum; de que se deve buscar a honra e não a
desonra; que o poder comum tem supremacia sobre a vontade dos indivíduos; que
cada um deve se esforçar para viver com os demais; que as pessoas devem ser
perdoadas, caso haja arrependimento; que todos os homens devem se reconhecer
como iguais perante a natureza; que cada homem por meio de palavras ou atos não
demonstre desprezo ou ódio para com outra pessoa; que as controvérsias entre os
homens devem ser mediadas por um árbitro; enfim, somadas a outras leis que se
resumem na visão do pensador: “Faz aos outros o que gostaria que te fizessem”[vi] e
que estas com o tempo, se reproduzem nas leias soberanas e do monarca de tal
modo que não podem contradizer-se, pois, a leis de natureza são operadas pela
razão, assim, como deve ser a justiça e as leis.
Na
verdade, tais leis são a reprodução dos 10 mandamentos, claramente explicitados
por Hobbes, não deixando dúvida sobre a temática seja do poder, do homem, como
amparados por uma ontologia religiosa, e sua completa associação com Deus.
Mesmo nas partes “DO HOMEM” e “DO ESTADO”, ficam claras como tais instituições
são constitutivas pela palavra de Deus, que ele abordaria de forma mais completa
e aprofundada, na Parte “DO ESTADO CRISTÃO”. Tanto é assim, que na análise das
categorias modais de necessidade e liberdade, o mesmo chega a afirmar que a
liberdade dos homens é regulada e consentida pela necessidade de Deus.[vii]
Sua
teoria da representação, com base nesta concepção religiosa, autorizada
diretamente (quando da fundação do Reino de Israel) ou tacitamente, quando Deus
consentiu, na visão de Hobbes, que os Reinos mesmo civis tenham a total
obediência dos súditos, se baseia na relação que o pensador chama de autor e
ator. Os súditos são os autores, que delegam à autoridade para outro, no caso,
o ator. Por isso, todos os atos do soberano estão e contém o respaldo e a
substância da autoridade dos súditos, dos autores deste processo e do pacto
social cujo soberano somente aceitou para que todos possam gozar de seus prazeres
e de estabilidade e conservação de sua vida.
Por
isso, Hobbes defende que não existe obrigação para com o soberano (ator) que não
seja consentido pelo autor (povo), mesmo que esta relação seja de um senhor
para com um servo. Porém esta obrigação como ressaltada por diversas vezes, não
inclui se auto-incriminar, nem ser punido por negar sua crença pessoal em
favor da crença do soberano. A não ser que seja objetivamente contra a religião
da política de Estado. Para ele, mesmo contra o soberano, o súdito não pode
pegar em armas. No Leviatã, afirma a
importância da educação das leis para os súditos, para estes não alegarem
ignorância ou não entendimento das mesmas.
Na
parte do Estado Cristão, ressalta que o poder dos apóstolos e pastores é um
poder de Conselho, isto, é um poder com a permissão do soberano para replicar
as leis do Reino de Deus. Não é um poder que visa a destruir o Poder civil, já
que “o Reino de Deus não é deste mundo”
E que desta forma, com os sacerdotes pregando a palavra de Deus, foi se
formando o Reino do Papado, que Hobbes analisa como sendo o fantasma do Império
Romano. Que o soberano civil é que detém poder sobre os sacerdotes, e que a
Igreja e o Papado não detém um poder central e comum a todos os Estados. Apenas,
como forma de missionários e mediadores da palavra de Deus. Reforça o poder dos
falsos profetas, e como o povo é facilmente manipulado, salvo os poderosos e os intelectuais.
O mais interessante é
que não passa despercebida a menção à interpretação religiosa de Hobbes sobre o
Poder eclesiástico e a forma, como ele demonstra profundo conhecimento sobre as
escrituras não pode ser subestimado. Ele remota as raízes de Adão, se
concentrando em Moisés na libertação dos israelitas do cativeiro, até a
formação do Estado de Israel, considerado por ele, no respaldo que busca nas
escrituras do Antigo Testamento como o Reino
de Deus na Terra, até que fora derrocado pela eleição de Saul, como novo
Rei, agora civil, em cópia social ao que se tinha nos demais Estados soberanos civis.
Por isso, o mesmo defende a autoridade
soberana e suprema e do Estado fundamentando-se que a escalada dos soberanos
civis detinha a delegação de Deus, mesmo tácita quando da recusa de seu povo (Povo
de Israel) em ser governado diretamente por ele. Esta delegação se fundamentava
na interpretação de Hobbes, na plataforma de espera em que os homens deviam
obediência ao soberano e vivesse em um Reino de Graças, com sua redenção e
aceitação de Cristo até a chegada do Reino de Deus, como prenuncia o último
livro do Novo Testamento. Para ele, a autoridade do soberano para a liberdade
social e restrita dos homens era respaldada e consentida pela autoridade de
Deus, como necessidade.[viii]
Esta interpretação não é pouca e não pode ser subestimada, principalmente,
quando naquela época (1651) já se tinha uma clara convicção de como o Estado
estava plasmado em uma concepção religiosa. Principalmente quando olhamos a
escalada e este mesmo sentimento ainda hoje. No mundo, e em especial no Oriente
Médio.
[i] HOBBES, Thomas.
Leviatã ou a Matéria, Forma e Poder de um
Estado Eclesiástico e Civil. 3ª edição. São Paulo: Ícone, 2008. Pág. 20.
[ii] HOBBES, Thomas.
Leviatã ou a Matéria, Forma e Poder de um
Estado Eclesiástico e Civil. 3ª edição. São Paulo: Ícone, 2008. Pág. 59.
[iii] HOBBES, Thomas.
Leviatã ou a Matéria, Forma e Poder de um
Estado Eclesiástico e Civil. 3ª edição. São Paulo: Ícone, 2008. Pág. 83.
[iv] HOBBES, Thomas.
Leviatã ou a Matéria, Forma e Poder de um
Estado Eclesiástico e Civil. 3ª edição. São Paulo: Ícone, 2008. Pág. 96.
[v] HOBBES, Thomas.
Leviatã ou a Matéria, Forma e Poder de um
Estado Eclesiástico e Civil. 3ª edição. São Paulo: Ícone, 2008. Pág. 106.
[vi] HOBBES, Thomas.
Leviatã ou a Matéria, Forma e Poder de um
Estado Eclesiástico e Civil. 3ª edição. São Paulo: Ícone, 2008. Pág. 117.
[vii] HOBBES, Thomas.
Leviatã ou a Matéria, Forma e Poder de um
Estado Eclesiástico e Civil. 3ª edição. São Paulo: Ícone, 2008. Pág. 155.
Referências:
BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da
Política. A Filosofia Política e as Lições do Clássicos. Rio de Janeiro:
Elsevier. 2000.
HOBBES, Thomas. Leviatã ou a Matéria,
Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. 3ª edição. São Paulo: Ícone,
2008.
ALTHUSSER, Louis. "Hobbes": in Política e História.
São Paulo: Martins Fontes. 2007.
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