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Ensaio: Breves Notas Críticas de Dois Tratados sobre o governo Civil de Locke


A obra Dois Tratados sobre o governo Civil[i] relata a preocupação de Locke, com a liberdade, o direito à vida e a igualdade. No primeiro tratado ele relata uma preocupação singular e enfática, muito repetitiva de que a autoridade que visa restringir a liberdade do indivíduo, não é sedimentada na autoridade paterna, como Robert Filmer defende em sua obra “O Patriarca”. O primeiro tratado é muito repetitivo, por demasiado, em negar que a autoridade política não vem da paternidade, em prejuízo da mãe, e que Adão não foi o primeiro Rei, pois não tinha súditos, e se o fosse, seria apenas um rei solitário, e que é uma inverdade segundo o mesmo, pois o reino, qualquer que fosse herdeiro de Adão, sendo assim, deveria ter apenas um Rei, e não se justificaria vários reinos que se perpetuaram na Terra, o que prova que a autoridade política não vem do pai, e sim, de uma legitimação do seu povo, e de suas leis. Tanto que o próprio Filmer, segundo Locke, reconhece a divisão das 12 tribos de Israel, da autoridade baseada na conquista, etc.

Sintomático, é a preocupação em preservar o indivíduo, um governo justo, em que a liberdade e a igualdade, além dos bens, são tidas como propriedades, que justificam a saída do homem do estado de natureza para o estado civil. Este é o ponto em que mais se debate no Segundo Tratado, a de que é a propriedade que funda o governo, que por sua vez, funda as leis. E que a propriedade é determinada, pelo seu usufruto originário, através do trabalho na terra, que comprova a propriedade, se não em título, em na propriedade de fato.

Cita que para a escravidão não há nenhuma defesa, já no primeiro parágrafo do Primeiro tratado. Fala sobre a revogação do Direito divino e absoluto, a partir da razão e da escritura. E que Filmer não esclarece o método de seu conceito de paternidade. Locke se põe frontalmente contra a ideia de soberania absoluta de Filmer e de Hobbes, baseada no Direito de Paternidade, sendo igual o direito do rei, especificamente no caso de Filmer, autor de O Patriarca, devido à conveniência dos poderosos em detrimento dos súditos. Ele bate impiedosamente em Filmer, dissecando que sua obra é totalmente sem argumentos, desqualificando seu método, e quando muito, classificando-o como apenas reiteração. Cita a contradição com a autoridade do pai, no próprio Decálogo. Refuta o que Filmer destaca como Direito da natureza de Adão. Locke defende que Deus declarou domínio dos homens sobre os animais, não sobre os homens. 

Ainda, que a doação da Terra à Adão era comum com a humanidade (filhos dos homens), e com a própria Eva. Que Adão era proprietário do mundo, por doação, não, seu monarca. Que o atributo intelectual era advindo da imagem de Deus, como forma de dominar seres inferiores. Que a menção a Noé, e aos seus filhos, mais uma vez, era à humanidade. Que a concessão da terra aos filhos dos homens não é subordinação e sucessão. Por isso, concessão era para Noé e aos seis filhos. Não somente a Noé. Locke denuncia que a preocupação de Filmer era mais com a monarquia absolutista, do que com o povo. Que a argumentação de Filmer, destoava da escritura, beirando à fantasia. Que não há domínio privado de Adão ou Noé subsidiado nas escrituras. A propriedade é mais ampla a Noé do que a Adão, que teve como segunda benção usar os animais como alimento. A liberdade de Noé, portanto, era maior. A Refutação de Filmer em sua interpretação de que Gn, 1, 28 estaria defendendo que Adão teria 1) poder monárquico absoluto e 2) propriedade exclusiva de todas as criaturas.

A ontologia de Locke, como Hobbes, tem base religiosa. Mas, para Locke, Deus não condena permanentemente a mulher. Sobre o homem e a mulher, Deus fala de um poder conjugal dos homens sobre as mulheres, e não poder político. De vida ou morte. Senão, haveria tantos monarcas quantos maridos, assim, como pais? Para Locke, o argumento de Filmer é frágil. Em Filmer, a paternidade é o maior argumento. De tal modo também, o poder dos pais sobre os filhos, não é supremo, deturpando Grócio, que não especificou o limite. Locke também trabalha com leis da natureza, e é recorrentemente contra a monarquia. Locke defende que o homem é artefato de Deus e não dos homens. O pai terreno é apenas instrumento da paternidade de Deus.

Locke critica argumento de Filmer em que o “Honra teu pai”, funda a monarquia. Homens são iguais e gozam dos mesmos direitos e privilégios, sem a concepção de Filmer. Os Direitos: 1) liberdade natural e 2) igualdade dos homens – são verdades inquestionáveis. Faz referência ao problema dos poderes sobrepostos de pais e filhos, sobre netos, etc, caso a autoridade paterna como poder político fosse indubitável (de quem seria o poder: do pai, do avô e do filho, em caso de morte do pai?). Observa a discrepância em associar origem da propriedade e paternidade. Propriedade e paternidade são títulos distintos. Qual tem a previdência? São direitos distintos  que não convergem sempre na mesma pessoa. Cita a contradição de Filmer em considerar ora um, ora outro como o mais importante. Outro ponto contraditório na visão de Locke: Se para Filmer, o poder pode ser usurpado, invalida a tese de soberania em Adão. Para Locke: a consciência deve ser balizada na obediência pelas leis  e regras soberanas.

Sobre o Segundo Tratado, especificamente, Locke coloca que “derrubar o governo” é o maior crime do homem. Que o estado de guerra é a força sem autoridade. Que o povo tem o direito de se rebelar e de fazer a revolução em caso de desvio e usurpação do Legislativo ou em caso de tirania. Mas, não pode ser banalizada. Que a dissolução do governo é imputada ao crime. Que a dissolução da sociedade pode ser feita pela alteração (deturpação) do Legislativo. Pois o Legislativo é a alma da sociedade política. Portanto, há uma distinção entre dissolução da sociedade e dissolução do governo. Diferença entre agir pela força ou pelas leis. Resistência de uma ou poucas pessoas não significa fim de Estado, mas, se a maledicência do governante ofende ao povo, é legítimo se opor ao governo. Defende que a tirania tem que ser combatida pela força. Que o Estado de guerra não inclui o Direito de vida e de morte da esposa, filhos e bens.

Sintetiza que é o uso injusto de força que provoca Estado de guerra. Que o Poder despótico não confere poder de posse, mesmo com poder da espada. Que os Estados mesmo os que se fundam na conquista, mas, não necessariamente, pelo consentimento do povo. Curiosamente, cita a providência - como “a recorrência aos céus”, em caso de faltar recursos ao povo. Observa que o domínio absoluto é diferente da sociedade política. Que o poder está sempre relacionado à propriedade. E que Estado despótico é igual ao estado de guerra: não há pacto. De qualquer forma, como observa Habermas[ii], Locke foi grande artífice do desenho do Estado (Declaração de Independência dos EUA) como conhecemos atualmente, na materialização junto com Hobbes e Rousseau, da positivação dos direitos naturais, como forma de apartar o Estado da sociedade, e com isto, resvalar a liberdade do indivíduo em forma de sua própria vida e de sua propriedade tendo como baluarte e dique a liberdade entre os homens, como forma de se proteger de um Estado despótico ou tirano.




[i][i] LOCKE, John. Dois Tratados sobre o governo.  São Paulo: Martins Fontes, 2005.
[ii] HABERMAS, Jürgen. Teoria e Práxis, Estudos de filosofia Social. São Paulo: Editora UNESP, 2013. Pág. 151-164.

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